Quando a gente pensa em dinheiro, normalmente operamos com duas mentes similares: a capitalista básica (“Aqui está 4 reais pelo café”) e a do escambo, que parece mais humana (“Eu ofereço meu trabalho em troca do seu, pode ser?”).
Nenhuma dessas atitudes opera com generosidade. A generosidade tem outra lógica: nada tem preço, nada pode ser comprado ou trocado. Tudo é sempre dado. Não há negociação possível. Isso não é algo que forçamos ou teorizamos: as coisas já são assim, basta observar sua experiência mais imediata de receber algo. Mesmo quando pagamos ou trocamos, aquilo está sendo dado — a diferença é se reconhecemos ou não a generosidade básica em qualquer relação.
Quando você paga 4 reais por um café, o café não custa 4 reais! Ele é bondade infinita. A pessoa fez 10 anos de curso para virar barista, se juntou a mais 10 pessoas, alugou um espaço, colocou móveis, limpou a mesa, acordou e veio te servir. Foram anos de esforço para você sentar agora e tomar um café. Não tem preço. Realmente não tem como comprar, pagar, retribuir, negociar, trocar por outra coisa. É uma bondade oferecida! É generosidade de uma ponta a outra, não tem como escapar da generosidade, assim como não conseguimos escapar do espaço.
Tente parar uma pessoa na rua e pedir para que ela te sirva um café. Só uma pessoa extremamente bondosa pararia a sua vida, faria 10 anos de curso, montaria um café e enfim te serviria graciosamente. É isso o que está acontecendo quando alguém te serve um café: não é obrigação, não é um negócio… Isso é só a camada mais grosseira. Aquilo é pura bondade. É uma riqueza que nunca consegue ser paga.
Por que então damos cinco reais? Para manter viva tamanha bondade. Não é troca. Não é negociação. Não é um pagamento por aquilo. Aquilo nos foi oferecido. Não tem como retribuir. Então só nos resta desfrutar e oferecer do zero, não “em troca”.
É mais ou menos essa a atitude que surge quando reconhecemos o que de fato está acontecendo ali:
“Que maravilha vocês dando café, meu deus! Toma, aceitem essa mínima contribuição para que vocês possam continuar oferecendo esse café todo dia para muitas e muitas pessoas.”
Um praticante experiente pode se pegar tendo a ideia de dar 100 reais por um café. A pessoa do caixa talvez fique perplexa. Ou talvez ele pode se pegar pedindo por um café, sem pagar nada. Isso vem de reconhecer, convidar, trabalhar diretamente com a generosidade sempre disponível em si mesmo e nos outros.
E veja que coisa mais interessante: se a pessoa um dia der 100 reais depois de tomar um café, que dona de cafeteria negaria outros cafés quando ela pedir? O “crédito” que ela ganha não é financeiro. É sutil. Não precisa nem anotar. Fica guardado na mente e na realidade. Ela passa a ser vista para além de consumidora. É isso que acontece quando furamos e desrespeitamos a aparente solidez do capitalismo usual. Na verdade, o verdadeiro crédito é esse, não o que aparece na fatura — esse é super volátil, muda de acordo com o dólar. O crédito verdadeiramente estável e confiável está na mente da generosidade.
O problema da mente da “compra” (e também da mente da “troca”) não é que ela introduz outra lógica, mas que ela oculta a verdadeira operação. A gente não vê mais a generosidade. Daí a gente se confunde e surgem mil complicações do tipo “Vocês dão desconto?” ou “Posso oferecer meu trabalho em troca?”. Não, aquilo está sendo dado! Então você pode falar: “Eu quero muito! Mas só tenho X a oferecer. É possível?” Se aquilo for possível, será possível, pois tem generosidade suficiente dos outros que estão contribuindo para que você possa contribuir com menos. Se aquilo não for possível, não teve generosidade suficiente, ou seja, aquilo sequer aconteceria se todos não oferecessem o suficiente. É como você tentar oferecer só 50 centavos por um café. Até é possível uma vez, mas se todos fizerem isso, a cafeteria fecha. Então não é que o café custe 5 reais; tal valor é só uma contribuição sugerida para quem deseja ver aquilo seguindo.
Desse modo, todo valor é só um convite para a nossa generosidade. Não é o preço daquilo!
Quando encontrarmos um “R$ 5”, podemos olhar assim: alguém olhou a sustentação disso com calma e está me ajudando a oferecer algo que realmente ajude nessa sustentação. Se alguém cobra R$ 200 por um prato ou R$ 4000 por um curso online, podemos também pensar se vale apoiar que isso siga acontecendo, se aquilo gera concentração de renda ou não etc. Mas em ambos os casos (quando há foco hipercapitalista e quando não há), R$ 5 não é o preço, mas um convite para a nossa generosidade, que pode se manifestar até mesmo ao não pagar, não bancar aquele movimento, oferecendo um choque de realidade: “Isso não é benéfico, não vou apoiar”. Nesse caso, oferecemos — uma espécie de feedback da realidade — até mesmo quando não pagamos ou boicotamos. É incrível.
Também quando pedimos, o que parece carência na verdade é generosidade: estamos oferecendo a chance do outro dar.
A generosidade prevalece. Não há carência enfim na base da mente.
Então, se você quiser oferecer o seu trabalho, ofereça, de graça. Não tem como você cobrar pelo seu trabalho. E não precisa trocar seu trabalho por nada. Você pode oferecer trabalho e dinheiro também, são coisas diferentes. Não existe isso de “Se eu ajudar nesse retiro, eu consigo um desconto?”.
Se você oferecer, pode ser até que o outro queira oferecer dinheiro ou trabalho para você. E talvez você ofereça tanto que até pareça “cobrar”, ou seja, oferecer não só o seu trabalho, mas a possibilidade do outro apoiar o seu trabalho. É uma dupla alegria que o outro terá: não só a que vem pelo seu trabalho, mas a de se alegrar em apoiá-lo. Quanto mais benefícios você gera, mais os outros querem apoiar seu trabalho. Quanto maior a sua generosidade, maior o convite para a generosidade do outro surgir.
É generosidade em todo canto. A lógica financeira vem só no verniz, na hora de calcular 2 + 2. Não tem lógica financeira na base da realidade. Não tem soma, subtração, divisão, multiplicação, porcentagem, lucro, dívida, débito, crédito na base da mente e da realidade. Tem só generosidade incessante. A realidade é uma mão aberta, incapaz de tomar algo para si, assim como o espaço. É uma questão de reconhecermos e agirmos com esse reconhecimento, mesmo quando parece que estamos trocando, negociando, cobrando ou pagando por um café.
*Dedico esse texto às queridas Isabela Raposeiras (Coffee Lab), Flavia Pogliani (The Little Coffee Shop) e Veronica Bilyk (Polska Café & Pierogi), que tantas vezes me receberam, me serviram e me ensinaram apenas por serem exemplos vivos de bondade. Escrevi com elas em mente.
Três adendos
1) Olhar tudo como generosidade não é “abundância”, palavrinha comum na cultura da autoajuda, do sucesso pessoal e da espiritualidade nova era. Dois livros para ir além dessa visão simplista: Escassez: uma nova forma de pensar a falta de recursos, de Eldar Shafir e Sendhil Mullainathan (que Eduardo Amuri estudou na comunidade online olugar.org) e A Dádiva: como o espírito criador transforma o mundo, de Lewis Hyde.
2) Quando você se dispõe a olhar tudo como generosidade, talvez surja uma objeção válida: “Ah, mas não é verdade que o café está sendo oferecido pra valer. A maioria dos lugares está fechada para quem não tem dinheiro. Não é público. Não está sendo oferecido. Estamos vivendo uma desigualdade social absurda!” Sim, exatamente. Tal realidade é facilmente naturalizada e normalizada quando obscurecemos a generosidade pela lógica meritocrática e individualista dos negócios: “Sim, a pessoa precisa pagar, o dono do restaurante tem todo o direito de cobrar quanto quiser, está tudo certo”.
Agora, quando começamos a olhar a bondade, fica ainda mais evidente a desigualdade social: por que esse café não está sendo oferecido a todos? Por que só alguns poucos frequentam esse espaço? Por que a generosidade está tão limitada? Não é mais uma questão de dar oportunidades para que as pessoas possam ganhar dinheiro e acesso. É uma questão de criar outro sistema nascido diretamente do reconhecimento da generosidade: mais lugares públicos, mais cultura e educação para todos, mais impostos para quem deseja fazer um lugar “exclusivo” para poucos, redução da cultura VIP etc.
Olhar tudo como generosidade não é aceitar a desigualdade, mas reconhecer que ela é muito maior do que parece. É um olhar que imediatamente deseja a transformação da realidade, não é um olhar que vê a “abundância” e pronto — atitude muito comum no grupo social que podemos chamar de “elite”.
3) Quando publiquei esse texto curtinho nas redes sociais, algumas pessoas falaram que ajudou a esclarecer um dilema comum, especialmente para autônomos: “Não quero trabalhar por dinheiro, mas como seguir trabalhando sem cobrar?”. A generosidade é a saída: se você realmente não trabalha por dinheiro, se não tem a ver com dinheiro, se está só oferecendo, qual o problema em receber dinheiro? Você oferece o trabalho. E a pessoa oferece dinheiro. São coisas diferentes. Não é um pagamento pelo seu trabalho. Na verdade, você está oferecendo também a possibilidade de ela se alegrar em apoiar o seu trabalho. E isso não é apenas um jogo de linguagem.
Agindo assim, você naturalmente vai convidar os mais ricos ao seu redor a serem generosos, e isso vai possibilitar não excluir de seu trabalho pessoas que não tem tantas condições. Você vai virando um motor de redução da desigualdade. Manter a atitude constante de oferecer naturalmente distribui a riqueza, não precisamos nem nos preocupar com isso. Não é uma atitude adicional, está inclusa no pacote: generosidade é equanimidade.
No caso de pessoas que recebem salário, também é melhor não trabalhar em troca de dinheiro. Você oferece e pronto. Mas isso não significa aceitar salários baixos. Pelo contrário: se a empresa não banca sua dignidade, ela está atrapalhando seu trabalho. Vale se juntar com outros e fazer uma greve, por exemplo. E se você começar a ganhar um salário gigantesco, é melhor seguir oferecendo livre do salário, o que vai impedir que a empresa se sinta no direito de sugar todo o seu tempo e sua vida. Não trabalhar por dinheiro, sempre oferecer, faz com que ninguém consiga nos comprar e nos manipular com dinheiro.
Uma outra visão sobre trabalho
Recomendo bastante essa palestra que Lama Padma Samten ofereceu em outubro de 2016, em São Paulo: